Qual é o papel do advogado de ESG? A advocacia está especialmente bem posicionada para contribuir para a implementação da agenda ESG, ajudando seus clientes a navegar um ambiente regulatório cada vez mais complexo.
No romance cujo título tomamos emprestado, Proust escreve que “as obras escritas para a posteridade, só a posteridade as deveria ler”. Esta ideia é valiosa para repensar a narrativa da sustentabilidade corporativa: durante décadas, ações ditas sustentáveis foram concebidas e executadas tendo em vista um horizonte distante e elusivo, que, com sorte, nossa geração jamais testemunharia. Enquanto isso, a prática dos negócios continuou a privilegiar, em larga medida, a máxima friedmaniana de que empresa socialmente responsável é a que maximiza lucros para seu acionista. Com a chegada do ESG à ordem do dia, e o senso de urgência que acompanha as questões ambientais, sociais e climáticas, as obras escritas para a posteridade precisam fazer sentido desde hoje.
ESG não é um conceito propriamente recente: suas origens próximas remontam a 2004, ano em que o então Secretário-Geral da ONU, Kofi Annan, escreveu a 55 das principais instituições financeiras do mundo convidando-as a integrar princípios de ESG ao mercado financeiro, e o UN Global Compact publicou o relatório Who Cares Wins, que incorporou expressamente o termo. Não é, portanto, a total novidade que o frisson que invadiu os mercados pode dar a entender aos que chegam agora. Por outro lado, tampouco têm razão as críticas que reputam que o ESG não passa de repaginação de um conceito antigo: há uma evolução conceitual importante, que não pode ser ignorada. A palavra-chave, aqui, é integração: em vez de filantropia ou oportunidade de virtue signalling por meio de ações que pouco afetam o negócio principal, o ESG passou a ser compreendido como um elemento central à viabilidade do negócio, a ser incorporado de modo amplo e transversal à operação e especificamente considerado em decisões de investimento.
O ESG ganhou tração no pós-pandemia e dá sinais de que veio para ficar, em especial na atual conjuntura geopolítica. A proposta de um great reset preconiza que o capitalismo de shareholders conviva com o capitalismo de stakeholders, e que a retomada econômica seja feita de forma mais resiliente, equitativa e sustentável, com base em métricas ESG e projetos de infraestrutura verde. Esta ideia vem sendo concretamente traduzida em políticas públicas – a exemplo do Green New Deal europeu e do plano de estímulo de Biden – e vem recebendo ampla adesão de atores de mercado.
Esta conjuntura tem implicações diretas e significativas para a advocacia, que, entretanto, ainda não foram de todo compreendidas e implementadas. A recente publicação Chasing the dragon: the rise of the ESG law firm identifica nove temas principais da prática ESG: responsabilidade ambiental, mudanças climáticas, direitos humanos, responsabilidade corporativa, governança, mercados de carbono, regulação ESG, titularidade de recursos naturais e finanças sustentáveis. Os autores pesquisaram um universo de 55 escritórios globais e concluíram que há uma corrida para estruturar a área, mas nenhuma banca oferece, hoje, uma prática ESG verdadeiramente integrada e abrangente.
A importância crescente do ESG exige que este atraso seja superado pela advocacia. Dito isto, qual é o papel do advogado de ESG? Que oportunidades a agenda ESG traz para a advocacia? Há duas frentes principais em que a participação do advogado de ESG será vital: na avaliação das materialidades que impactam o desempenho ESG de seus clientes, ajudando-os a navegar em um ambiente regulatório cada vez mais complexo, e atuando em processos judiciais e extrajudiciais que questionem aspectos vinculados a ESG.
Para apreciar adequadamente estes dois escopos, é preciso, em primeiro lugar, desmistificar a ideia de que ESG é, essencialmente, voluntário. É verdade que ainda há muito de autorregulação, mas é clara a tendência a tornar obrigatórios padrões que hoje são voluntários. A exemplo do que ocorreu com as divulgações financeiras, o mundo caminha para a harmonização e comparabilidade das divulgações não financeiras (vide, por exemplo, as iniciativas da IFRS e da IOSCO), e, simultaneamente, para a sua obrigatoriedade. Exemplos robustos deste movimento são a obrigatoriedade de adoção de disclosures baseadas na TCFD (Task Force on Climate-related Disclosures) – no Reino Unido e no Brasil, por exemplo -, os processos de reforma, privilegiando aspectos ESG e climáticos, da Instrução CVM 480 e da Resolução BACEN 4.327/2014, e, nos Estados Unidos, as movimentações do Federal Reserve e da SEC no sentido de levar em consideração o risco financeiro associado a ESG e a mudanças climáticas.
Além disto, não há ESG sem compliance. Na medida em que a pauta ESG integra aspectos tão variados quanto, por exemplo, emissões de gases de efeito estufa, diversidade ou remuneração de administradores, entre vários outros, é evidente que o desempenho ESG das empresas depende do atendimento a um sem-número de normas relacionadas a estas questões. O advogado desempenha papel central na identificação de materialidades e no aconselhamento a seus clientes em cada uma das áreas implicadas. Para fazê-lo a contento, entretanto, a prática de ESG exige a capacidade de compreender estas questões de modo coordenado e transversal. Além disso, a advocacia ESG não se limita à minimização de passivos. Tomando-se por exemplo a prática ambiental – o “E” do ESG -, seu objetivo não é apenas o de obter licenças e evitar multas, mas, para além do gerenciamento de riscos, o de promover o aproveitamento efetivo das múltiplas oportunidades que a adequada incorporação das variáveis ESG ao negócio oferece, sobretudo em um contexto de retomada verde e de transição a uma economia de baixo carbono.
A segunda frente de atuação diz respeito à litigância ESG: à medida que as empresas estejam cada vez mais sujeitas a obrigações ESG vinculantes, é possível antecipar novos tipos de litígios estratégicos questionando seu cumprimento. Para além de litígios socioambientais e climáticos baseados em direitos humanos e direcionados contra órgãos governamentais, é provável que sejam manejados casos envolvendo o setor privado, com base em fatores ESG mais concretos e granulares, tais como exposição a ativos encalhados (stranded assets), stress tests de resiliência climática em diferentes cenários de aquecimento global, preparação para a transição para a economia de baixo carbono e investimentos de impacto. Também é possível antever ações de stakeholders quanto a desinvestimento consciente, a falhas de informação ao consumidor e a práticas de greenwashing, climatewashing e rainbow-washing, e, ainda, maior escrutínio sobre o papel do setor financeiro. A litigância ESG também pode envolver casos extrajudiciais, por exemplo, por meio de propostas de resoluções de acionistas, de reclamações na OCDE, via contenciosos sob mecanismos ISDS (Investor-state dispute settlement) ou no âmbito da OMC, e perante reguladores de valores mobiliários, comércio e publicidade e outras agências governamentais. Riscos reputacionais à parte, também é bastante plausível que o setor privado tome mais frequentemente a ofensiva e inicie litígios questionando obrigações ESG e climáticas, a exemplo da recente judicialização das metas do RenovaBio.
É preciso atentar, também, para o crescimento da litigância ESG com características transnacionais. As possibilidades são várias: litígios questionando a terceirização de impactos ambientais e climáticos, tendo por alvo entidades que são relativamente mais limpas em seus países de origem, mas são grandes poluidoras em outras jurisdições (vide os casos Total, EDF e Casino, baseados na lei francesa de vigilância de 2017, que questionam atividades em Uganda, México, e Brasil e Colômbia, respectivamente), litígios envolvendo cadeias de fornecimento que abranjam múltiplas jurisdições, ou, ainda, disputas no âmbito de acordos comerciais, que, cada vez mais, envolvem questões ambientais sensíveis e potencialmente contenciosas, tais como barreiras de carbono e desmatamento associado à produção.
Esta variedade de possibilidades exige que os escritórios de advocacia detenham conhecimentos e estrutura específicos para atender a este tema em ascensão. Além disso, outro impacto relevante do Zeitgeist do ESG, para o qual escritórios talvez estejam ainda menos preparados, é aquele que se faz sentir na cultura organizacional. A estruturação de práticas ESG consistentes depende da atração e retenção de advogados que dominem conceitos crescentemente sofisticados e transdisciplinares, e esta capacidade de captar os melhores talentos é afetada por um componente geracional que não deve ser ignorado pelos gestores: a percepção negativa da população mais jovem quanto a atividades não sustentáveis ou insuficientemente diversas. Exemplo desta tendência é a iniciativa Law Students for Climate Accountability, em que alunos de faculdades de Direito nos Estados Unidos mantêm um ranking de escritórios de advocacia baseado na receita por estes recebida, em transações e litígios, de clientes cujas atividades exacerbam as mudanças climáticas.
A força e a ubiquidade do ESG têm levado todos os atores relevantes, estatais e não estatais, a agir para adequar-se aos imperativos deste novo paradigma. Por todos os motivos acima, a advocacia está especialmente bem posicionada para contribuir para a implementação da agenda ESG, ajudando a construir negócios mais sustentáveis e resilientes e uma sociedade mais próspera e equitativa, para a posteridade e para nossos contemporâneos.
Alessandra Lehmen
Fonte: Migalhas, 2021.
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